A narrativa da amorizade
Quando era pequenina e vinha passar férias a Portugal, ficava sempre na minha Tatá. Tatá é o nome carinhoso em Francês para tia e esta é uma tia muito especial: é minha tia-avó materna. Íamos à praia todos os dias, para o Molhe, onde a Tatá tinha barraca. Ao fim de tarde, o Tonton ia lá ter. Depois voltávamos todos juntos, jantávamos e eu fazia uma corrida com o Tonton para ver quem comia a sopa mais depressa. Eu ganhava sempre. Na verdade, ele deixava-me ganhar. Gostava de saltar os quintais que ficavam por trás das casas, ali na Constituição, e ir até à casa da Mina brincar. Brincava com as formigas que saíam por uma frincha. Dava-lhes água para não terem tanto calor. Mal sabia, na altura, que as afogava com tanto zelo. Não gostava de laranjas, por isso, a Tatá dava-me tanjas e eu toda contente comia as laranjas todas sem pestanejar. Ia ao cabeleireiro e, quando chegava a parte de pintar as unhas, eu também queria, mas de vermelho! Na altura, também adorava sapatos vermelhos. Ela lá me convencia a pintar de rosa e, outras vezes, a minha teimosia levava a melhor…
O momento mais feliz do dia era quando me ia deitar. Se estivesse lá a Tia Isilda, ensinava-me o Pai Nosso em Português e lá adormecíamos as duas. Se não estivesse, a Tatá sentava-se na minha cama e contava-me uma história. Às vezes, inventava e, no dia seguinte, pedia-lhe a mesma. A Tatá já não se lembrava e eu dizia: – Ó Tatá, ontem, não me contaste assim! A minha história favorita era de longe a da Carochinha, que se punha à janela, depois de encontrar uma moeda a varrer a cozinha, e ouvia aqueles animais todos a gritarem muito alto. Coitado do João Ratão, morto, no panelão…
Mais tarde, já morava no Porto e fiquei a estudar no Carolina Michaelis que é perto da casa da Tatá. Uma vez por semana, ia lá almoçar mas já não fazia corridas com o Tonton. Às vezes, ligava-lhe antes de ir almoçar e dizia: – Ó Tatá, posso levar uma amiga minha para almoçar? – E ela dizia sempre que sim.
A Tatá teve sempre tempo e paciência para mim. Teceu a minha infância de palavras e de personagens maravilhosas. Os meus pais não tinham tempo para isso. A Tatá não teve filhos, mas é como se fosse a avó que não tive…
A Tatá tem agora 86 anos e está muito doente no hospital. Tenho ido lá quase todos os dias vê-la, dizer-lhe que gosto dela, porque, daqui a uns dias, quando ela partir, também partirá essa parte da minha infância, tecida de palavras, que foi muito feliz…
Vinha-te aqui dizer que tens uma coisa no words e deparo-me com este texto.
Emocionante!
Estás a fazer o melhor para ela e para ti, estarem as duas. Pode partir parte da tua infância, mas as memórias ficam.
Um grande abraço () e beijocas*
Pois!
Todos nós de uma maneira ou de outra tivemos as nossas “Tatás” que nos custa deixar partir!
Mas, tal como diz a “Wind”, “as memórias ficam” e nada as poderá apagar!
Um abraço
Jorge
http://vagabundices.wordpress.com/
Bonito texto! Estás a fazer o que é certo, a retribuir o amor e o carinho que ela te deu!
Beijos 🙂
Não sabia que tinhas andado no Carolina, nem tão pouco que eras do Porto. Mas só por curiosidade, ficas saber que muitos, mas muitos anos antes, eu andava no D. Manuel II. Já não é do teu tempo mas ainda o Carolina era para meninas e o D. Manuel era para rapazes!… Impensável nos dias de hoje, não?
Um abraço
Jorge
http://vagabundices.wordpress.com/
´de fugida para deixar um beijo :))
Para mim foi a minha Bivó Carolina, que se foi quando eu tinha 16 anos. Depois a minha avó… a minha mãe… 3 gerações de mulheres que marcaram a minha vida para sempre. Mulheres que me deixaram a magia das palavras, o encanto das memórias, a força da luta diária feita sem dependerem de ninguém.
Quem pudesse ter a coragem que eleas sempre tiveram, a presença de espirito e a palavra sempre doce para dar a quem precisava 🙂
beijinho para ti. e guarda sempre o melhor que ela te deu.
Querida Jacky, não tenho nada para acrescentar a não ser que se precisares de qualquer coisa diz. Beijo grande.
Eu conheço a tua Tatá, sempre foi simpática para mim…lembro-me de ir lá almoçar contigo e de tomarmos chá na tua casa e ela trazia as bolachas hungaras para comermos!Sei também que te custa vê-la assim, as pessoas doentes mudam muito fisicamente e parece que “desaparecem”…estás a despedir-te dela e a ficar com as boas lembranças…Bjs e força 🙂
Qd eu era pequenina,…..o meu Pai andava na guerra……numa guerra lá longe….onde os meninos eram pretos, num sítio onde eu não sabia onde ficava.
Qd o meu Pai, vinha a nossa casa, por alguns dias…..lia-me umas histórias de um livro maravilhoso do nosso João de Deus. O livro chamava-se Histórias para Crianças……o meu Pai, trazia sempre um ar cansado e tinha a pele amarela. Tinha um robe de seda com uns desenhinhos azuis e vermelhos….o robe tinha um cinto, com umas borlas de onde pendiam umas fitinhas. Para mim, aquilo parecia-me um pincel da barba…..e enquanto ele lia eu sentada ao colo dele, ía-lhe passando a borla com as fitas pela cara, como se o estivesse a encher de sabão…..ele ria-se…..e ía fechando os olhos sonolento e cansado……e eu, criança impaciente, qd deixava de ouvir a narrativa, dizia-lhe: “Vá continue Pai, e depois?”
Devo dizer que fiquei muito contente por virem cá comentar e deixarem algumas palavras amigas. Sinto-me sempre reconfortada com estas provas de afecto. Estes dias tenho andado um pouco afastada porque tenho a minha tatá bastante doente no hospital (como podem ler neste post) e ando sem motivação nenhuma para escrever. Desculpem-me.
Um beijinho e uma óptima semana para todos!